Eu vou morrer

Por Cesar Seara Neto
O sábado amanheceu cinzento com as promessas de chuva se concretizando. A garagem do GPA antes das seis da manhã já estava repleta de atletas Master, ansiosos para o treino de sábado. O café do Adão, o melhor da América do Sul, já havia sido passado por algum substituto, com o mesmo esmero e carinho, mas nunca é o café do Adão, aquele com bolo de milho recheado com creme, rosca ou biscoito furado.
O rio estava calmo, sem vento, mas as nuvens carregadas ativaram o modo racional do Prof. obrigando os atletas para as temidas máquinas, como são conhecidos os remoergômetros. Estes equipamentos simulam a nossa remada, com o assento deslizando tal qual o carrinho do barco, os pés ficam presos, e quando empurramos as pernas e puxamos os braços, fazemos girar uma ventoinha que precisa deslocar uma massa de ar. Esta força aplicada num determinado tempo, é transformada em potência (watts), mostrada segundo a segundo no entediante visor.
Na prática, o que o remador controla é o ritmo das remadas por minuto, mais conhecido como voga, e a passagem, que nada mais é o tempo que levamos para percorrer quinhentos metros.
Antes de progredir na saga do treino, tenho que descrever um pouco mais o cenário atual, nas ultimas semanas que antecedem o Encontro Sul Americano de Remo Master a ser realizado em Mendoza, Argentina.
Fui incumbido de capitanear a equipe da Barraca, eleito de forma democrática e unânime pelo meu amigo Cata (de vermelho na foto), responsável pela montagem no ano passado. O GPA possui uma forte tradição neste encontro, tendo vencido as últimas catorze edições de forma consecutiva. A cada ano que passa, aumenta a disputa.
Aliada a tradição e companheirismo, vem a expertise em montar verdadeiros acampamentos às margens das raias, com a tradicional barraca com mais de cinquenta metros quadrados de área útil destinada ao descanso e reabastecimento calórico das combalidas guerreiras e guerreiros. A opção de comida vegetariana é incluída no menu e levada à risca, entretanto, no ano passado, o pessoal da linha verde, quase fica sem comida, pois a lentilha com batata, temperada apenas com sal, ficou divina.
Terminada a descrição do cenário, de modo a aumentar a ansiedade do leitor, voltamos ao treino. A planilha afixada no mural determinava quatro tiros de setecentos metros, com descanso entre eles. Como o Prof. estava bonzinho, ele diminuiu os tiros para apenas dois, e subiu a distância, para mil metros cada um. Moleza. Antes dava um total de dois mil e oitocentos metros. O meu pensamento de engenheiro, me disse, agora são apenas dois mil metros.
Entretanto, o ser humano não é um ser pitagórico que pode ser linearizado em números. Vou tentar explicar.
A estratégia de largada que se faz para mil metros de percurso é trinta remadas fortes, seguido de mais sessenta remadas de percurso, para mais trinta remadas fortes de chegada. Há provas que a largada dura cento e vinte remadas, ou seja, são sempre remadas fortes, onde o adversário rema ao seu lado durante todo o percurso da prova.
Quando terminamos as trinta remadas da largada, em especial quando estamos na máquina, você pensa: Eu vou morrer.
Aquela sensação do coração batendo mais do que o seu peito aguenta, subindo para o estômago, começando a fazer cócegas no suco gástrico, o cérebro pensa, tem alguma substância nociva no meu organismo, hora de acionar o modo ejetar.
A certeza de que você vai vomitar, começa a diminuir, à medida que as pernas viram troncos de madeira mineralizada, mais densa do que chumbo. A partir deste momento, a cabeça deve tomar conta da situação. Porém, existe uma enorme diferença entre deve e consegue.
Aqui entra o subjetivo da questão, de onde vem as forças necessárias para dominar as dores das pernas, a certeza de que Eu vou morrer, os pulmões buscando mais ar? Ao teu lado, teu colega de guarnição aumenta a pressão ao empurrar as pernas e você começa a fazer o mesmo.
Ainda que o camarão tenha azedado, gíria da garagem para quando não se consegue atingir o esperado, devido ao mal estar causado, leia-se, deu problema, seguimos remada a remada, na árdua luta contra aquele famigerado relógio, que marca a contagem regressiva da distância a percorrer. Programamos a máquina para percorrer mil metros, ou seja, o visor marca quatro dígitos. Na primeira remada, a quantidade de dígitos já cai para três, remar até os cem metros finais para diminuir para dois dígitos no visor, tenham certeza que é mais longo que uma viagem de joelhos a Santiago de Compostella.
Difícil dizer quando chegamos neste último trecho, quando os olhos de peixe morto fulminam aqueles dois dígitos, dizendo algo do tipo: Acaba poxa, ou se viramos do avesso para dar o sprint de chegada.
Tiro terminado, gansos afônicos e roucos grasnando nas máquinas, tentam mexer as pernas para frente e para trás, puxar o ar para dentro dos pulmões, de forma a eliminar o acido lático que invade todos os vasos sanguíneos do seu corpo, turvando o seu olhar.
Agora sou dominado pela dúvida entre o orgulho de ter vencido mais uma etapa, e o remorso de ter caído mais uma vez nesta dolorosa armadilha. A resposta a esta pergunta é mais alguns minutos de descanso, com a certeza de que tenho mais um tiro pela frente, e o meu tempo tem que ser pelo menos, o mesmo do primeiro.
22 comentário
Rafael Santos Polycarpo · 5 de março de 2023 às 14:16
Resumindo:
Você pode mentir para o Barco, mas nunca irá mentir para máquina.
A máquina não aceita tolera corpo mole.
Ela pode acabar o remador em apenas 30 remadas.
Respeite a máquina!
historiasderemador · 5 de março de 2023 às 15:22
Tal qual o barco, a máquina é soberana! Pode ser que alguém vá bem na máquina, e não vá bem no barco, mas, alguém que não vá bem na máquina,
dificilmente irá bem no barco.
FRANCINE EVALDT · 5 de março de 2023 às 14:20
Escreves muito bem!
Abração querido!
historiasderemador · 5 de março de 2023 às 15:22
Obrigado Fran
Acácio · 5 de março de 2023 às 14:42
Espero que o encontro em Mendoza seja muito bom, Seara.
historiasderemador · 5 de março de 2023 às 15:23
Será mais um grande evento
André Baracuhy · 5 de março de 2023 às 16:02
Eiiiiita judiação, essa máquina castiga a gente, não tem arrego, chegava a dar pesadelo na galera na semana de testes. Abraço Neto.
historiasderemador · 5 de março de 2023 às 16:05
Eu só conheci a máquina, quando Master
Renato Lisbôa Müller · 5 de março de 2023 às 14:50
Belíssima narrativa. A máquina (ergômetro) é cruel com todo indivíduo que a utiliza. Ela não ameniza a avaliação e fornece resultados reais, sem maquiar ou esconder informações. Toda pessoa que já remou nela, dando o seu máximo, sabe que gansos afônicos são comuns, ao finalizar o treino. Mas entre a dor e o orgulho, com certeza, devemos enaltecer o esforço feito. Por isso, ORGULHO, sempre! E depois do descanso, tudo recomeça!
historiasderemador · 5 de março de 2023 às 15:23
Afónicos e roucos
Andre Donadio · 5 de março de 2023 às 16:05
Grande Seara! Parabéns pelo poder de síntese sobre a sensação de “remar na máquina “.
historiasderemador · 5 de março de 2023 às 18:06
Quem rema entende melhor
Rosane Goulart · 5 de março de 2023 às 17:35
Há um ditado : no pain no gain….. sucesso aí!!!!
historiasderemador · 5 de março de 2023 às 18:06
Verdade
SERGIO L. FLECK · 5 de março de 2023 às 17:49
Parabéns!!! Bela narrativa e criativa abordagem para algo que por princípio é sofrido. Mas sempre impressiona a força de vontade e o esforço dos colegas. Muita força, muito preparo físico e uma gigantesca determinação. Motiva e desafia todos os membros da equipe. Muito bom isso.
historiasderemador · 5 de março de 2023 às 18:07
Tamu junto!
HENRIQUE CALIARI VAHL · 5 de março de 2023 às 18:41
Excelente narrativa neto, parabéns, o remoergometro é só mais uma das ferramentas que podem validar o quanto o remador pode suportar o limite de seu corpo, para os mais dedicados que tem o famoso sangue nos olhos, lembro quando subimos o morro da cruz com o intuito de bater o recorde ( que era do Pantera), ou quem subia mais rápido a escadaria do veleiros, ou o melhor tempo na pista no teste de atletismo, ou mesmo na Raia para alcançar os parceiros em handicap, mas quem tem o sangue nos olhos sabe que no final da prova sempre termina com o gosto metalizado de sangue na boca, com todos os cintomas que você tão bem descreveu.
historiasderemador · 5 de março de 2023 às 20:24
O gosto de sangue não foi citado, mas é assim mesmo
Ronaldo Carvalho · 5 de março de 2023 às 20:37
Parabéns. Vc escreve muito bem. Consegue passar muito bem Sua e de muitos a sensação do REMO. Grande Abraço
historiasderemador · 5 de março de 2023 às 21:13
Um comentário de um campeão que viveu e vivenciou isto, sabe bem como é. Um grande abraço
Bianca Cannavon · 6 de março de 2023 às 21:58
Me senti honrada em ser citado minha lentilha com batata do ano passado ❤️ Vai ser repetida esse ano hem 🥰
Amei o texto, muito bem colocado é descrito nossas sensações, sempre vale a pena no final do treino pois aprendemos muito.
Abraço querido
historiasderemador · 6 de março de 2023 às 22:07
Eu tô indo ao Sula só pela lentilha