Histórias de virador

Publicado por historiasderemador em

Por Cesar Seara Neto

A sexta-feira da Paixão prometia terminar com temporal, daqueles com ventos fortes, galhos espalhados pelas ruas, trovões e raios. Acredito que o vento soprou tão forte, espantando o calor e as chuvas de um outono que iniciou muito quente.

Cheguei a pensar que este tempo atravessaria a noite, estragando o treino de Sábado de Aleluia, mas não, o rio liso, espelhado, quase se unia ao céu com algumas nuvens, criando um tom cinza abafado, promessa de mais um dia quente.

Meu sábio companheiro de desafio do Dois Sem, aproveitou o feriado para se aventurar em trilhas e acampamentos, o professor olhou para mim e disse: skiffzinho.

Estava com saudades do meu divã aquático, silencioso e amigo como este papel que aceita minhas elocubrações sem nada me questionar. O barco solitário é um verdadeiro exercício mental onde o corpo trava um duelo com a psiquê vendo quem manda mais.

O treino consistia num aquecimento até as taquaras rio acima, e na descida, dois tiros longos com voga baixa, mas crescente. Iniciei o primeiro tiro sem ninguém ao lado ou próximo para dar aquela estimulada. Aos meus olhos apenas a ré do barco e o speedcoach marcando o ritmo e a passagem (velocidade).

O brasileiro é conhecido pela sua capacidade inventiva. Muitos afirmam que um dia a NASA vem nos estudar com mais propriedade. Eu não acredito. Eles não são tão gabaritados para alcançar nossa criatividade. O que o Brasil tem de melhor é o brasileiro, em especial porque somos viradores, nos viramos com o pouco que temos e fazemos muito com os recursos disponíveis.

Eu terminei o primeiro tiro orgulhoso de mim mesmo, voga marcada nos intervalos de tempo, o barco andando muito bem. As pás dos remos encostavam na água somente quando era o momento da remada, parecia até um remador!

Mas como tudo na vida, sempre existe algo a nos testar, a nos tentar. Um frenesi de botes a motor deixou o espelho d’água com algumas rugas, tal qual a minha testa idosa. Quando o cansaço chega, ele te domina começando por baixo das unhas, percorrendo as células do teu corpo, terminando sua jornada nas pontas dos fios dos cabelos, para quem os tem ainda.

Comecei o segundo tiro, com a certeza de que havia exagerado no primeiro. Para me irritar, faltando ainda cerca de dez minutos de tiro, alguém resolver escrever o seu nome na água com um deste botes motorizados, bem a frente do meu barco.

A raiva foi maior que o cansaço, me deixando cego, me levando a cometer um dos maiores erros no skiff, olhar para trás (para a proa) enquanto se vai pegar a remada. Aquele momento que a bunda encosta no calcanhar, os braços abertos, o centro de gravidade do barco se eleva, qualquer descuido faz com que a pá do remo entre para baixo como um facão cortando a água. O barco trava e aderna.

Uóóóque. Foi isto que ouvi enquanto a raiva tomava conta da minha visão. Porém, já era tarde. Aquela casca que flutua e era dominada por mim, agora se portava como um cavalo teimoso que atira o jóquei ao chão. Ainda não sei o que me derrubou na água, mas afirmo que era uma onda que não tinha mais do que cinco centímetros de altura.

Passado o choque térmico da água mais fria, arranquei os pés das sapatilhas, trazendo a cabeça para fora d’água. Ninguém quer ser atropelado por um navio.

Avistei uma prainha na ponta da Ilha do Pavão, ao lado de um píer de uma casa de eventos. Deixei as meias nos pés, o barco virado de boca para baixo, os remos presos às forquetas. Fui empurrando o barco entre braçadas e pernadas, até quando o pé encostou na lama, momento para tirar a meia. O lodo do fundo do rio afirma que o teor de matéria orgânica processada pelo rio é alto. Fico com a esperança de que a origem seja vegetal, e não animal, pior ainda se for humana.

Soltei um dos remos da Forqueta para poder virá-lo, Dentro dele meu par de chinelos e a garrafa plástica com o último gole para matar a sede do treino. O relógio do speedcoach, a prova d’água, mostrava os últimos dois minutos da contagem regressiva do treino.

O professor passou com a sua lancha procurando o náufrago. Assobiei, mas ele não me viu na prainha. Quando me avistou, se aproximou perguntando se havia quebrado algo no barco. Respondi para ele que não, e para mim mesmo, somente o orgulho.

O medo de virar o skiff não é o da água, mas sim da plateia. Ao chegar na rampa, fui aplaudido, muito mais do que se tivesse vencido uma regata.


12 comentário

Renato Muller · 14 de abril de 2024 às 12:22

O medo maior de virar o barco é e sempre será, da reação da plateia,..

Joaquim Ameba · 14 de abril de 2024 às 12:23

Limões, limonada da boa.
És um monstro, até quando estás com raiva, mandas ver bem, trazes à tona tua grande experiência de virador, o aplauso foi merecido.

Dilermando Cattaneo · 14 de abril de 2024 às 12:56

Baita texto, como sempre.
A primeira vez que virei um Skiff, estava exatamente defronte aquela prainha na ponta norte da Ilha do Pavão, e foi para lá que ‘nadei’ para desvirar e subir novamente no barco.
O triste é que ali virou uma Marina, e com ela essas lanchas e jetskis que, ao contrário do nosso esporte, em nada contribuem com a harmonia com a natureza.

Acácio · 14 de abril de 2024 às 14:38

Ótimo, como sempre, Seara!

Nery · 14 de abril de 2024 às 15:21

Ótimo Seara querido, grande abraço.

Werner Günther Höher · 15 de abril de 2024 às 12:46

Parabéns Seara, tudo é aprendizado.
Estamos sempre aprendendo!

Forte abraço!
💪🚣🏼‍♂️💨💨💨

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