Homens de barro e botas

Publicado por historiasderemador em

Por Cesar Seara Neto

Após um longo mês, atravessei o túnel da Conceição, que na verdade é um viaduto, a caminho de um local que me dá muito prazer, o Clube. O desvio pelo rodoviária sinalizava que o período de exceção ainda perdura. A neblina ao fundo, prometia a máxima, nuvem baixa é sol que racha.

O caminho foi mais longo desta vez, as comportas que dão acesso ao Parque Náutico, ainda se encontram inoperantes. Difícil dizer se o aumento do percurso aumentava a ansiedade, a saudade ou o medo do desconhecido, mas que já era sabido.

Ao fazer o retorno no viaduto da BR 116 em direção a Avenida Guilherme Schell em Canoas, o espírito começou a se preparar. Um forte odor invadia minhas narinas causando confusão mental, a neblina se tornava mais densa. Buracos, paletes, lixo e entulho agora eram o pavimento a ser percorrido.

Uma parte da rua que dá acesso ao Clube estava alagada, somente por meia pista se transitava. A Free Way não tinha o movimento natural de uma manhã de sábado, ainda não eram oito horas.

Enquanto o carro se deslocava, e olhávamos os demais Clubes, indicava o que não queríamos ver com os olhos, agora não mais através de fotos ou vídeos na telinha do telefone.

O portão descarrilhado logo foi posicionado, correndo sobre suas rodinhas, graças aos malabarismos do nosso coach João. O Clube voltava a ser nosso. A marca d’água nos boxes da entrada, dava uma noção do tamanho do painel de guerra que estaria a nossa disposição.

Sglosh, sgloch, assim caminhávamos vestindo nossas luvas e botas novas de borracha sobre o lodo que cobria o petit pavê. Quando enfim abrimos a porta da garagem, a proa do skiff São Paulo, jazendo pendurada, me pareceu um canudo de plástico usado, relegado ao esquecimento, após ter sido o principal instrumento para se engolir o conteúdo de uma garrafa. Fiquei alguns segundos estupefato sem entender que os demais barcos, quase na sua totalidade, haviam sido danificados.

Quem já remou próximo ao Rio Tietê com suas águas escuras, sabe de qual olor estou falando, ainda entranhado no meu nariz. Quanto mais revolvíamos a camada espessa de lama, mais o cheiro dominava a cena.

O silêncio devido a ausência de rasantes de aviões aterrissando no aeroporto, era quebrado por alguns helicópteros que ainda auxiliam as operações da cidade que começa a recuperar vias até então interditadas pelas águas do rio, que estavam a menos de um palmo da entrada da garagem.

Nem mesmo o arado humano, ferramenta desenvolvida com muita tecnologia pelo amigo Mário, uma barra de madeira longa, atada com duas cordas nas extremidades, puxada por dois voluntários dava conta do infinito barro que brotava do piso de concreto.

Difícil imaginar que aqueles homens e mulheres ali presentes, mãos calejadas pelos remos, tão acostumados a remar quilômetros suportando toda a pressão exercida na região lombar, agora eram desafiados por duas palavras, Lodo e Rodo.

Exaustos e felizes por terem cumprido a primeira de inúmeras etapas, sentados ao sol, de costas para o Rio que estava um verdadeiro espelho, aguardavam a chegada do rebocador Turistinha, para mais uma empreitada, colocar a rampa no seu local.

Domingo continuou a limpeza.

Vamos em frente!


18 comentário

Antonio Ricardo Lanfredi · 2 de junho de 2024 às 14:03

Obrigado Seara por trazer esse retrato vivo do nosso GPA.

Gilberto · 2 de junho de 2024 às 14:05

Força ai, Seara. Logo, estarao novamente, fazendo o que tanto curtem.

    Renato Lisboa Müller · 2 de junho de 2024 às 17:42

    Que a tristeza gerada pelo caos da atual realidade, não seja maior do que a força
    e a esperança de que as coisas melhorem, o mais rápido possivel.

    historiasderemador · 3 de junho de 2024 às 11:02

    Em breve estaremos!

Roberto Mulbert · 2 de junho de 2024 às 20:38

Seara, a tua crônica revela a força e resiliência dos parceiros do estimado Rio Grande do Sul.
Estamos a distância torcendo pela rápida e franca recuo.
Grande abraço aos amigos remadores

Antônio Farias Filho · 2 de junho de 2024 às 21:41

Neto, é mais uma passagem do Remo gaúcho dentro da água. É esta foi uma passagem daquelas atolada literalmente. Deus esta de Timoneiro nesta grande remada.
Muita força e fé à todos envolvidos nesta reconstrução!
Um grande abraço à Todos!!!

Joaquim Ameba · 3 de junho de 2024 às 17:22

“…Difícil dizer se o aumento do percurso aumentava a ansiedade, a saudade ou o medo do desconhecido, mas que já era sabido…”.
Aqui o resumo de um mês de espera para que o valor superasse o medo, do conhecido, que não era sabido, inesperado, mas muito visível.
A água, o meio onde “vivem” os barcos, os afogou, mas agora flutuarão pomposos, depois do susto que os tornou pequenos, para remadas grandiosas, fartas e, certamente, repletas de força!

Rosane · 3 de junho de 2024 às 17:31

Isso também vai passar! Dias de glória, dias de luta! Força amigo!!

ANDRÉ LUIZ FERREIRA · 3 de junho de 2024 às 18:02

Força, todos juntos em diversas frentes, atuando num só sentido: recuperar tudo o que se perdeu.
Belíssimas palavras Seara, cortam o coração mas remexem na memória as grandes lembranças vivenciadas no Clube, os sons do vozerio na garagem, a rampa impoluta, o cheiro do suor misturado com água, o café na ilha … obrigado. Todos à proa.

André Baracuhy · 3 de junho de 2024 às 20:14

Que tudo se restabeleça o mais breve possível e que todos possam voltar a remar nesse Guaíba de boas lembranças.

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