O barco e a bicicleta
Passavam dez minutos das cinco horas da manhã, um cricri insistente ecoava no quarto escuro. Não era um grilo chamando sua amada, tampouco era o gorjeio do sabiá que se antecipa a chegada da primavera. O alarme tocava anunciando mais um dia. Os gatos pularam da cama, aterrissando nas almofadas das suas patas, desaparecendo de forma silenciosa sobre o parquê envernizado em direção a cozinha. A primeira dose de ração do dia foi servida.
O vento norte suave soprava sem interferir na remada do Four Skiff misto, Mário na voga, eu na sota-voga, Dra. Suzi na sota-proa e Lenira na proa. Independente da posição, guarnição ou barco que eu remo, quando sento nele, procuro me concentrar e contribuir ao máximo para o conjunto formado.
No remo master, a principal característica que temos, e nos motiva a aceitar desafios, é a diversidade entre os atletas. Uns são mais bem condicionados fisicamente, alguns tem mais tempo em cima dos barcos, mais elasticidade, já outros não tem tanta flexibilidade. O abdômen protuberante é uma qualidade de alguns privilegiados, outros são agraciados com estalos ao flexionar os joelhos, enfim, é uma deliciosa aventura, cada dia diferente do outro.
O professor João lidera com maestria a escalação das guarnições dando preferência a montar barcos Four Skiff, mais seguros e confortáveis para idosos que já não tem mais o jogo de ombros necessários nos barcos de palamenta simples, mas desde as enchentes, sobraram apenas dois Four para treino. Ele procura compor de forma que atletas semelhantes em idade, peso, gênero, experiência e condicionamento integrem a mesma equipe.
A escassez de cascos, principalmente dos Single Skiff, tem requerido bastante da sua vasta expertise, quando o número de atletas é ímpar, fica mais difícil, mas ele é um grande estrategista e sempre dá um jeito.
No meio do rio, depois de vários metros remados, percebi que o bombordo estava caindo. Escrevi certa vez que o equilíbrio enquanto remamos é inegociável, e pode comprometer o treino, em especial no aspecto psicológico. Nem todo mundo consegue conviver com as adversidades. Lembrei disso naquele momento. Agora acrescento que o conjunto ou sincronismo também é inquestionável.
Aristóteles enaltecia a temperança como principal virtude a ser desenvolvida em nossas vidas. Aquele meu amigo, antigo patrão, que nos ensinava sobre afiar o serrote, também tem uma máxima sobre andar de bicicleta e a correlação com o que fazemos de nossas vidas. Espero que ele leia essa crônica e me convide para um café, quando poderei anotar no meu caderno as perguntas que devem ser respondidas sobre o veículo de duas rodas movido a pedal. Equilíbrio é um dos temas.
Enquanto eu fitava a nuca do voga e me concentrava na remada de aquecimento, esses pensamentos espocavam na minha cabeça. Eu gostaria muito que o meu comportamento, em especial com as pessoas mais próximas, fosse equilibrado e constante, tal qual procuro aplicar aos barcos em que remo, mas todo dia é uma oportunidade para aprender, assim sigo remando e aprendendo, com a certeza de que nunca aprenderei tudo o que gostaria ou deveria, será?
Foto: Copa Norte/Nordeste – Créditos Juscelino Nunes
2 comentário
Acácio · 22 de setembro de 2024 às 13:11
“….Todo dia é uma oportunidade para aprender….”.Está frase reflete, para mim, a essência de vivermos em comunidade, o que pressupõe cionstante aprendizado..
Parabéns pelo texto, Seara!
Joaquim Ameba · 22 de setembro de 2024 às 19:31
Equilíbrio para tudo, principalmente nos momentos mais difíceis.