O tempo de uma virada

Publicado por historiasderemador em

Por Cesar Seara Neto

Depois de viajar mais de dois mil quilômetros desde Brasília a Porto Alegre, enfrentando as rodovias brasileiras, repousei minha cabeça no meu travesseiro, os pés aquecidos pelos gatos me deram uma boa noite de sono. Antes que a preguiça dominasse e diminuísse ainda mais a curta semana de treinos, me apresentei para o professor. Ele me retirou do Quadruplo com as meninas, para o Skiff Simples, o meu divã aquático.

É nele que enfrento meus desafios e glórias ao mesmo tempo. O remo que sai limpo d’água, quando entra macio e rápido. O deslize do barco, o som das bolhas quando ele se desloca bem. É um exercício mental interessante, enquanto eu me concentro nos detalhes de cada etapa da remada, o subconsciente se alimenta de pensamentos para essas crônicas, que parecem remar ao longo do percurso, como se fosse uma câmera invisível a gravar as cenas e o que se passa na minha mente.

O que é possível fazer em menos de um segundo, unidade de tempo do sistema MKS? Piscar os olhos mais de uma vez, inspirar o ar ou expira-lo. Abrir ou fechar as mãos, encostar um dedo no outro. Virar a cabeça. Deixar a pá do remo cair na vertical em seguida empurrar as pernas, com a maior pressão possível.

Também podemos fechar a forqueta que segura o remo, ou conferir se ficou bem fechada. Ao remador do Skiff só é permitido prudência, e jamais, jamais esquecer o mandamento: conferir a tranqueta!

O vento leste que soprava em Porto Alegre nos recomendava fazer a volta à Ilha do Pavão. O canal entre essa ilha e a dos Marinheiros, nos proporciona água lisa, abrigada do vento.

Um FÓM forte e longo disse ao meu cérebro que um barco estava a cruzar o canal do Cais do Porto e o vento deixaria a água encrespada. A balsa do União retornava ao Mercado. Parei de remar para não cruzar a sua frente. As marolas diminuíram e segui minhas remadas contra o vento.

Um intervalo de tempo menor que um segundo é possível medi-lo com instrumentos de precisão.  Não sei precisar se foram décimos ou somente centésimos, mas ouvi um teque, enquanto puxava o remo. Ao mesmo tempo que eu virava a cabeça para o bombordo, eu via e sentia o remo já sem apoio, sem a tranqueta para mantê-lo onde deveria ficar e deixar o barco equilibrado.

O pensamento agora era tirar os pés das sapatilhas, enquanto tudo estava escuro e molhado. A água numa temperatura agradável. Desvirar o barco, colocar o remo de volta na forqueta e subir no skiff, ainda que olhando para a proa, ao contrário do que deveria ser, mas isso não é nada comparado às infinitas explicações dadas e o resgate ao orgulho submerso no lodo do fundo do rio.

O dia ainda me reservaria mais uma virada, mas dessa vez foi em terra quando o telefone tocou, coisas que temos que conviver e manter a mente tranquila para suportar o coração cheio.

Dedico essas linhas ao meu irmão Du e sua família linda, um dos melhores professores de Remo que eu conheço.

Categorias: Crônicas

4 comentário

Vera · 3 de novembro de 2024 às 05:25

Sempre aprendo um pouco mais com suas crônicas, vc torna o leitor um protagonista história. Obrigada Seara!

Joaquim Ameba · 3 de novembro de 2024 às 13:09

A vida é cheia de ajustes invisíveis aos que vivem fora da nossa mente, no mundo real só aparecem cenas prontas e os bastidores não entram na edição final.
Alguns boiam, outros remam, mas quem conserta e fixa, fica invisível, mas é o mais necessário.
Oposto ao manual de instruções, aqui ensinas o que não se escreve.
Força a todos que, de uma forma ou de outra, precisam desacelerar, descer e ajustar rumo e embarcação, depois seguem em frente.

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