Tudo passa
Uma chuva invisível e silenciosa cai. O chiado dos pneus dos carros rolando sobre o asfalto, denuncia sua presença. Sinto o ar mais úmido do que o costume, parece que gotículas se chocam contra a minha pele, aumentando a sensação de frio.
A água cristalina corre pela sarjeta na parte alta da rua que não foi invadida pelas enchentes, sem nos pedir licença ou autorização. Substância tão simples e uma das mais abundantes na Terra, tão necessária a vida, mostra que sem equilíbrio, ela pode acabar, inclusive, com vidas.
Sinto medo.
A parte baixa da rua vai se despedindo devagar do rio que retorna ao seu leito, como um dragão que dizimou plantações e criações, saciado com tudo que conseguiu carregar para dentro de si.
Nas calçadas, móveis de madeira aglomerada, se desmancham como doces açucarados, derretendo pelos bueiros, entupidos de lama, a mesma que deixou cicatriz nas fachadas das casas e na memória de seus moradores.
As pessoas cabisbaixas só veem o chão, em busca de algo que se aproveite dos entulhos espalhados ou empilhados em montes. Por trás das grades do bar que serve de ponto de encontro para conversas animadas, gargalhadas e abraços sinceros entre amigos e namorados apaixonados, é uma mistura de cascos de garrafas vazias, que ficaram a deriva nas águas turvas e agora estão deitadas ao chão sujo de barro curando a ressaca.
O barulho do lava-jato se mistura ao da sirene que passa gritando de um lado para o outro. Um helicóptero sobrevoa a quadra. Curiosos e moradores ainda ilhados, tiram fotos, atônitos e incrédulos. Conversam, diz que vai parar de chover, mas o peso das roupas molhadas mantém os corpos curvados para frente, os olhos ainda fitam o chão, não tem coragem de elevar o olhar para o céu. O medo é maior.
Outro final de semana chegando, o sábado se aproxima, daqui a alguns minutos, tentarei dormir o sono dos justos e sonhar.
Sonhar que estou acordando dez minutos após o relógio marcar cinco horas da manhã, tirar a remela dos olhos, vestir a roupa do treino, andar de meia para não acordar a Gica e os gatos que já estão acesos.
Sonhar que estou lendo no mural de feltro verde, o plano de treinamento preso com as tachinhas, dos temidos sábados, para depois, exausto e feliz, ficar naquelas resenhas eternas, com os braços balançando, dobrando as pernas como se ainda estivesse remando, e rindo, rindo muito com minhas amigas e amigos remadores.
Tudo isto vai passar.
10 comentário
Sandra Berber · 18 de maio de 2024 às 11:33
É uma tristeza ver o povo do RS sofrendo. Mas, é um povo valente, que vai vencer as provações que as águas lhes trouxeram!
Estamos todos empenhados com a Campanha de Doações para os desabrigados, seja enviando dinheiro, ou doações de roupas e tudo mais que estão precisando.
Que Deus abençoe a todos os voluntários e nossos irmãos gaúchos!🙏
historiasderemador · 18 de maio de 2024 às 18:19
Obrigado Sandra. Tudo passa
Rosane Goulart silvestre · 19 de maio de 2024 às 10:45
VAI PASSAR, Cesar, é o apoio não vai parar, até que todos estejam de corpo ereto e com os braços estendidos para o céu com sorriso no rosto! E não vai demorar🙌
historiasderemador · 19 de maio de 2024 às 19:18
Vamos em frente!!! Muita força e fé
Renata · 19 de maio de 2024 às 11:13
Lindo! Triste! Poético! De uma sensibilidade ímpar, senti na pele e na alma o peso da água que invadiu nossas vidas de uma forma tão bruta. Tu traduziste os nossos sentimentos com perfeição e poesia. Chorei.
historiasderemador · 19 de maio de 2024 às 19:16
Venceremos com a ajuda de todos
Acácio · 18 de maio de 2024 às 11:50
Belíssimo texto, Seara!!!!!
historiasderemador · 18 de maio de 2024 às 18:19
Obrigado amigo
Donadio · 19 de maio de 2024 às 09:41
Momento inimaginável,um pesadelo que insiste em não nos deixar despertar. Vamos ter de manter a voga e guardar energias pois a distância será longa, mas triunfaremos como nossos ancestrais.
historiasderemador · 19 de maio de 2024 às 19:17
Ainda temos muito percurso pela frente, mas com uma boa voga, mantendo a pressão, chegaremos lá