A minha terra é o mar
Por Priscila Rosa – remadora da Teranga – base Quebramar Hoe Club
Foto: Rochanna Santos
Meu avô paterno criou os 15 filhos na Costeira do Pirajubaé e a nenhum deles colocou em uma canoa e os ensinou a pescar. O avô materno, quem curiosamente veio a ser padeiro na Aeronáutica, morava em Coqueiros onde teve oito filhos. Mesmo crescendo permeada pela ilha, em que mar, de alguma forma, supriu sustento, minha mãe arrematava: “ – O mar a gente precisa respeitar, água só até as canelas”.
O trajeto para os almoços com todos reunidos era acompanhado pelas narrativas dela, que até hoje me alerta sobre a pedra que está perto do trapiche na Praia da Saudade. “Aqui a gente tomava banho, era local de veraneio, nós só descíamos a rua”. Bastava cruzar a ponte e logo estávamos na rua dos limoeiros, onde raramente se via alguém tarrafiar, com os ranchos de canoa à beira e as dragas fazendo o aterro mais em frente.
Difícil é explicar como deixei a presença do mar diminuir em mim. Foram as viagens, uma floresta, os rios, igapós e outras passagens que me atravessaram talvez. Mas nada disso impediu que reatássemos nosso encontro após um convite inusitado e igualmente especial. Em uma manhã fria de agosto, ao tirar as meias e o par de chinelos, começaram ali histórias que medalha nenhuma é capaz de contar.
No último dia do ano, contávamos quatro, três remadores e a Teranga. O percurso era algo simples, local que já tínhamos ido algumas vezes durante o dia, entre treinos e expedições. Naquela noite, o som das músicas e conversas logo foi ficando distante. Remávamos no escuro, com todos os sentidos à flor da pele. Pelo planejado, sabíamos que deveríamos ter chegado ao banco de areia, mas não o encontrávamos. Remamos.
Foi quando ao longe, junto às batidas do coração, ouvimos, não sei ao certo quem ou o quê, quero acreditar que uma gaivota ou um biguá, nos chamou e direcionou à esquerda.
Permanecemos pouco tempo na areia. A subida da maré nos surpreendeu, deixando os três, um de frente para o outro, a contar projetos, planos, segredos, sentindo o mar tomar as pernas. O breu do céu nos convidou a ouvir histórias de povos que se afastam, mas que buscam se encontrar, estar junto aos seus. Não demorou para a Teranga vir até nós. De fininho, mesmo sem vento, se aconchegando, pedindo afago.
O pouso dos aviões e o brilho das festas nos bairros foram contemplados com serenidade, como se à distância e com os pés submersos, tivéssemos suspendido a passagem do tempo, dando a oportunidade de sermos espectadores privilegiados no silêncio. Depois de algumas horas, decidimos voltar.
Às cinco da manhã, juntou-se a nós uma remadora grávida. Ao contemplá-la na canoa conosco, trazendo a expectativa do por vir, tivemos a certeza de ter nascido ali algo novo: a unidade daqueles remadores com a canoa. Entoamos “E ala e”, e depois de contemplar o nascer do sol, ajeitamos nossos corpos para um descanso. Foi quando algo à deriva nos chamou a atenção e colocamos à prova o quanto de força ainda tínhamos para remar. Os pescadores dos ranchos ao lado se alegraram com o deck que trouxemos, aproveitando para fazer cultivo de moluscos.
Da praia, contemplei mais uma vez o mar, sabendo que ele sempre esteve em mim, subindo pelas canelas, me marejando sem importar onde meu corpo faz parada. Comecei o ano com a felicidade de quem percebe que venceu um grande desafio, sem aplausos ou plateia, e repeti para mim baixinho aquela canção: “a minha terra é o mar”.
31 comentário
Gláucia · 13 de setembro de 2022 às 15:20
Que memória afetiva incrível!
Edi · 13 de setembro de 2022 às 15:29
Tão sensível e tocante quanto o mar são suas palavras! A escrita é sua terra! Bravo 👏🏻
Luciana Guimarães · 13 de setembro de 2022 às 20:58
Que lindo, Pri. Pura poesia. Me transportei pra dentro da tua história… momentos mágicos que só a canoa nos proporciona.
Suelen Miranda · 14 de setembro de 2022 às 10:57
Mas que coisa mais linda! Que texto, minha amiga! Vc escreve como ngm! O cheirinho do mar chegou junto e emocionou aqui!
Sandra Rossi · 14 de setembro de 2022 às 19:41
Verdade, tão sensível e tocante quanto o mar são suas palavras. Parabéns Priscila, belo texto. 🔝👏🏼👏🏼👏🏼
Karla Lenise Margarida · 13 de setembro de 2022 às 15:48
Que lindo texto Sila!!! E que virada de ano especial, hein!? 👏👏👏
Iuri · 14 de setembro de 2022 às 09:52
Lindo texto Pri! Parabens 👏👏👏
Marianne · 13 de setembro de 2022 às 15:49
Lindo texto: “A voz do mar, fala à alma”
Ricardo · 14 de setembro de 2022 às 10:57
O mar sempre devolve nosso olhar, te olha de volta mesmo que seja em memória. Bonito ler sobre tua reaproximação, Sila.
Pamela · 13 de setembro de 2022 às 15:57
Que lindo texto, consigo ver cada cena acontecer!
Franciane · 14 de setembro de 2022 às 09:53
Que lindo, Sila!
Me senti vivendo esse momento junto com vocês!
Escrita aconchegante e cheia de afeto!
Juliana · 13 de setembro de 2022 às 16:38
Que texto mais delicado e potente. A cara da autora!
Juliana de Paula Figueiredo · 13 de setembro de 2022 às 16:54
Que texto mais inspirador, Priscila!!! Remei contigo enquanto lia, me vi pelo mar, na canoa, a olhar para o céu e escutando o som dos pássaros! Parabéns pela escrita tão sensível!
Roseli Broering · 13 de setembro de 2022 às 17:08
Ah, coisa mais linda na vida é ter memórias e poder reavivá-las no teor da emoção. Emocionada com o texto e por ele ser teu, essa pessoa de alma linda a quem tive a honra de conhecer.
Karina · 13 de setembro de 2022 às 21:10
Que linda história! Um reencontro! O mar que te habita e hoje desperta na força da tua história, habita em todos nós, Afro brasileiros!
Ingrid · 14 de setembro de 2022 às 00:54
Misto de euforia e cisco nos olhos. Texto que nos remete a tantas lembranças
Vanessa · 14 de setembro de 2022 às 09:23
Senti contigo cada momento. Fico feliz de ter vencido os desafios e vindo aqui contar um pouco das tuas conversas internas.
Tenho certeza que depois disso, ninguém majs foi o mesmo. Nem você, nem o mar…
Quebramar Hoe Club · 14 de setembro de 2022 às 19:02
Priscila foi um prazer estar junto de você, da Silvane e da Teranga naquela noite. Na sua bela narrativa pude voltar naqueles momentos. Eternizou em palavras sentimentos vividos. Parabéns pelo texto..
Maria Albertina · 14 de setembro de 2022 às 10:44
Priscila, como tenho o privilégio de conhecer a Teranga e todo o cenário que vc descreveu, remei contigo. Como vc é maravilhosa com as palavras! Uma sensilidade profunda como o mar e uma leveza que nos convida a fluir contigo nessa história. Vc tocou na minha alma!!💙🚣🏾♀️
Ana Cristine · 14 de setembro de 2022 às 11:17
Que lindo Pri. Me senti remando com você neste mar lindo !
José Angelozzi de Oliveira · 14 de setembro de 2022 às 13:24
Cila, lindo e emocionante texto. Parabéns 😍
Jéssica · 14 de setembro de 2022 às 13:52
Mergulhamos junto ctg nos momentos descritos. Excelente história!
Tania Ramis · 14 de setembro de 2022 às 17:41
Lindo o que li e vi!!!!
Gabriela Lemes · 14 de setembro de 2022 às 18:01
Que texto lindo e emocionante, Pri. Quanta sensibilidade!
Aglair · 14 de setembro de 2022 às 18:35
Parabéns minha linda menina pelo belo texto 👏👏
Carlos Daniel Ofugi · 14 de setembro de 2022 às 19:56
Parabéns pelo texto Priscila. Suas palavras revelam o grande poder que o mar, a canoa e a amizade(o que dirá tudo junto!!) são capazes de despertar e aflorar em nossa alma. Obrigado por compartilhar, de maneira tão bela e poética, algumas de suas lembranças.
Cahuê Ramos · 14 de setembro de 2022 às 21:04
A canoa e suas histórias!! Muito legal Sila, palavras vindas do coração!! Parabéns!!!
Anelise · 14 de setembro de 2022 às 21:45
Que lindo, parabéns!
Caroline · 14 de setembro de 2022 às 21:48
Que texto lindo Pri, cheio de sentimento e amor
Silvane vettori · 15 de setembro de 2022 às 17:05
Priscila amada !!! Gratidão por colocar em palavras a história que encerrou/iniciou mais um ano da nossa existência terrestre… me transportei para aquele momento único, sentindo e vibrando intensamente !!!! Inesquecível… 🙏🏾
Silvane Vettori · 15 de setembro de 2022 às 17:16
Priscila amada !!! Gratidão por colocar em palavras a história que contempla parte da nossa existência terrena… belíssimo relato de um momento único, transcendente, que ficará na memória e coração de quem o viveu… 🙏🏾