Por que remar?

Publicado por historiasderemador em

Por Eric Menezes

O paletó que servia de uniforme, no final do longínquo ano de 1980, tornava a sala de aula quente demais para os alunos da então sexta série ginasial, eu entre eles, do Colégio Padre Antônio Vieira. Ao meu lado, um colega de turma, o Cancela, tecia elogios a um esporte do qual eu ainda pouco tinha ouvido falar: o Remo. “As palavras hão de ser como estrelas”, já dizia o famoso padreco em seu “sermão da sexagésima”. Então as palavras de meu amigo me guiaram, como estrelas, até a garagem do Botafogo FR, com seus barcos de nomes cintilantes: Pegasus. Pólux. Castor. Hydra. Fênix. Perseu…

Eu tinha 12 anos de idade.

Tão novo quanto eu, a princípio não vi ninguém. Mas havia. E logo eu encontraria um amigo para a vida toda, Felipe Rafael Ibeas. Na verdade, ele um pouquinho mais velho. Nossa amizade começou na rampa, esperando o barco. Às vezes ele encostava, e eu saía. Para quem chegou tão cedo no Remo, como eu, e não se tornou timoneiro, naquela época não havia regata. Fiquei quase dois anos remando skiff. Perseu, de madeira, tela branca. Fênix, azul, de fibra. As vezes remava um double, e até um tri-skiff, essa excentricidade. Mas nada de provas em regatas. Mudei de colégio, e no novo em que me matriculei havia um aluno, um pouco mais velho, que também remava no Botafogo. Pedro, acho que era o seu nome. Conversava com ele sobre o Remo no clube e na escola. Um dia, houve uma regata de escolinhas, da SUDERJ. Remamos um quatro-sem e ganhamos. Eu nunca havia remado palamenta simples. Passou um tempo, e a sede náutica do Botafogo entrou em obras. O velho barracão verde, de madeira, seria derrubado, e uma garagem de alvenaria erguida em seu lugar. As atividades do clube foram transferidas para a última garagem do estádio de Remo da Lagoa, para onde levaram as embarcações. Eu então já fazia parte de uma pré equipe, mas bastante solitário pela minha pouca idade. Éramos ainda só eu e Felipe. Só dois anos depois chegariam outros da nossa idade. O professor era, na época, um ainda jovem Juca, o gaúcho que depois fez história no remo do norte e do nordeste.  E de repente, o técnico da equipe, Arnaldo Brant, trocou de clube. Foi para o Vasco. Muitos remadores o seguiram, inclusive meu amigo Pedro. O Sr. Hugo Ibeas era um dirigente abnegado do Botafogo. Talvez mais um amigo do clube que um dirigente, não lembro bem se tinha cargo. Lembro que, alguém se referindo a ele, o chamou de “abnegado”. Tive que ir ao dicionário pesquisar o significado. Á noitinha, depois do treino da tarde, Hugo, pai do meu amigo Felipe, me perguntou: “você também vai nos deixar?”. Eu, então um menino de 13 anos de idade, me senti importante como nunca antes na vida. Como assim? Esse senhor está preocupado com uma possível saída minha do clube?! Mais tarde, eu entendi que grande parte da minha paixão prematura pelo Remo, veio da atenção e importância que deram a mim tão jovem. Ainda com 14 anos, eu tinha o técnico do clube, na lancha, me observando num canoe. Eu que tinha perdido o pai aos 10 anos de idade…Décadas depois, assistindo a uma reunião da FRERJ, testemunhei um dos técnicos presentes defendendo que se tirasse a categoria infantil das regatas oficiais. Como temos, no Remo, gente que não entende o que há de mais único em nosso esporte! O privilégio de ter crianças, jovens, adultos e idosos, todos não apenas participando, mas contando pontos e fazendo a diferença numa mesma regata, num mesmo campeonato! É fundamental que se dê importância ao atleta desde que é infantil. Essa é uma das graças do Remo. Uma valorização desde cedo, injetando nele uma forte dose de orgulho e autoconfiança. Isso, esporte nenhum faz como o Remo.

No colégio, reencontrei o Pedro, que havia se transferido para o Vasco junto com quase toda a equipe, falando de seu novo clube. Era o final do ano de 1982, e ele me chamou para assistir a última regata, aquela que decidia o clube campeão. Eu nunca havia estado numa regata do campeonato. Já havia disputado duas provas de canoe, uma na Regata da Escola Naval, e outra em Paranaguá, PR. Mas seria a primeira vez que assistiria a uma decisão de temporada. E ali, acompanhando a sucessão das provas; a tensão contida em cada uma delas; o envolvimento do público, atletas e dirigentes; as peculiaridades tão únicas do esporte, eu, que era muito novo, percebi algo que naquele momento ainda não podia definir bem, e que hoje entendo com muita clareza: eu senti o peso da tradição do esporte pioneiro do Brasil, que faz com que cada nova regata carregue cem, cento e cinquenta anos de história.

Então, afinal, por que remar? Uma vez, já master, corri uma prova da Regata do Futuro, no dia seguinte de minha chegado do Rallye do Canal du Midi, num quatro-sem que terminou em segundo lugar. Perdemos para uma guarnição que tinha na voga o Ronaldo Esteves de Carvalho. Ao sair do barco, a repórter do Sportv, conhecida minha da Globosat, empresa onde trabalhei muitos anos, veio me perguntar: “Eric, o que você diria para essa garotada que está participando agora dessa regata “Remo do futuro”?

Eu que, diferentemente do Ronaldo, não tinha feitos excepcionais pra relatar, falei assim: “O que tenho a dizer pra eles é que, se seguirem meus passos, terão pelo menos mais 20 anos de remo pela frente”.

Hoje já são mais de quarenta anos. Alguns deles mais perto, outros distante. Ou como diziam antigamente – e nas palavras de seu Umberto Stella Vasconcelos, o popular Doquinha – talvez um pouco mais, se pudermos contar “de manhã e de tarde”.

Reme para ter força, física e mental, e fôlego de campeão. Reme para fazer amigos e ter muitas histórias para contar. Reme para fazer parte da longa história do esporte mais tradicional do país. Reme pelo prazer do movimento, e para ver o sol nascendo e se pondo, sentir a chuva caindo, e o corpo saudável e relaxado depois do treino. E reme para vencer sempre a si próprio e, se possível, aos outros.

O Concurso tem o apoio de Remar.Sul.


6 comentário

Carlos Eduardo Santiago Bede · 21 de setembro de 2023 às 11:56

Seu texto daria um filme, uma excelente história do remo e do clube. Um curta autobiográfico. Transcorri no tempo mesmo sem nada saber da sua vida. Que beleza. Parabéns

Adriano Pontes · 21 de setembro de 2023 às 13:49

Excelente texto, temos algo em comum, o técnico Juca, fez o papel de Pai para mim e para muitos amigos dentro de nossa trajetória no remo.

Felipe Rafael Ibeas · 24 de setembro de 2023 às 13:23

Eric, meu grande amigo, parabéns pelo lindo texto.
Ainda teremos mais uns 20 anos de remo no nosso Botafogo.

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